segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O LIXO DOS OUTROS


- Não podemos fugir das pessoas para sempre. Acredite: de um jeito ou de outro elas conseguem nos agarrar e, quando nos agarram, estamos quase sempre deprimidos e embaraçados. Nos pegam enjoados da solidão, empanzinados da vida que recusamos. Nos pegam , literalmente, agônicos. No futuro, quem sabe o presente, cuja vocação é transformar-se em passado, não empreste sentido a nossa existência incompreensível e despropositada? 

"Conclusão: vivemos para recuperar os valores de uma vida pregressa e inatingível. Não há cu que aguente. O primeiro a sair, por obséquio, deixar a luz acesa" - pensou.

A impressão que eu tinha era de que ele era bastante confuso. Dir-se-ia que conforme as palavras iam pintando, ele se deixava colorir, carregar, e sabe deus em que daria! Que conclusão era aquela? De onde vinha? Provinha de fato do que ele estava dizendo? Parecia-me um tanto arbitrária num primeiro instante. E não há muito mais tempo a conceder num instante entremeando outros instantes, todos sempre preenchidos pela voz grave e o sotaque forte de Cabra. O fluxo segue, as falas se sobrepõem, as emoções, os sentimentos... Cabra espalma as mãos na mesa, Cabra abre os braços, os que estão em volta lançam soslaios! De qualquer modo, um segmento da fala dele me remeteu a um trecho do Nietzsche. Qual livro? "O solitário estende a mão muito facilmente!", algo assim. Lembrei também de "As Moscas da Praça Pública".

Antes de tomar a palavra, coloco uma música pra tocar - Você, Nordestino, conhece a banda "Eddie"? Se liga aí! - então prossegui sem esperar resposta - Acontece muito por telefone, digo, das pessoas me "agarrarem" em momentos impropícios. Meus amigos, quando acordo é sempre o momento impropício. Se estou dormindo e, por um milagre, me acordam, o que é difícil e demanda persistência, aí nem se fala! Encontram um diabo! Há situações que nos provocam até nos arrancarem alguma estupidez, alguma grosseria... Como foi o caso do lixo com meus vizinhos que botavam troncos, fraldas, tudo na lixeira de frente da minha casa, não dentro dela, mas próximo a ela, no chão... Um dia perdi as estribeiras, perdi a razão enquanto limpava a calçada... A besta! Lá estava eu de ceroula no portão da senhorinha cardíaca a gritar que ela me viesse atender. Ah sim! Não sem antes jogar os troncos no meio da rua. Um senhorzinho que me via naquela azáfama rebelde, colocando artigos de mudança na caçamba de um caminhãozinho... Foi a primeira vítima: "Que que foi?" - perguntei. Ele, "Nada! Não tenho nada a ver com isso não, amigo! Quem jogou este tronco de mamoeiro aí foi o pessoal da casa aqui! - apontou-me o portão. Em frente a este portão a Besta grita pelo nome da mulher, que agora já não vem ao caso nem à memória, mas que começa por "Dona..."! A Dona... me respondeu nervosa, mulata e gorda, e comecei a me acalmar um pouco, vendo que estava exagerando, que talvez devesse ter começado a resolver aquilo antes, com a razão... Por conta das verves exaltadas, apareceu o macho, magro e mulato. O Brasil está cheio desses machos de subúrbio aquecidos sob brasilits ferventes. Veio ele dizendo que era assim que se levava um tiro: "gritando no portão dos outros!"... Eu deveria ter lhe respondido que também se davam tiros por jogar lixo na frente da casa dos outros e que se ele estava nervoso se justificasse melhor ainda minha ira de um ano de lixo amontoado... Mas bastava que ele fosse magro e ficasse me rodeando sem demais ofensividades! No mais, eu estava no terreno dos miseráveis, o terreno da sem-razão. A coisa se esclareceu! Quanto à "Dona", assim que ela saiu pelo portão, tentei acalmá-la e recuperar a razão, explicar o que estava acontecendo e mesmo porque eu estava tão alterado. Ela me disse, então, que a lixeira fora instalada ali por seu marido, na época em que morava na casa o antigo proprietário. O magro rodeando: "A prefeitura recolhe isto aí!"; Eu dizia: "Recolhe não, cara! Não recolhe não! Os troncos ficam aí!"; "É assim que se leva um tiro!" Dona disse que o marido dela era pedreiro, que ela era viúva... Que o proprietário aceitou que ele fizesse e instalasse a lixeira pelo uso comum. Quando era vivo, claro! Bom, de uma forma ou de outra, a Besta resolveu o caso. Arrancaram a lixeira de lá, colocaram em frente a casa deles. No problem, sir! Agora, quando não há a besta... Meu problema é a civilização em mim. Sabe? Essas saídas eufêmicas que nos obrigamos a dar! Conhecem a piada: "Sua mãe subiu no telhado?" - se não souberem eu conto! Mas é isto, o telefone! Então, ligam pra você, mas você está com a escova de dentes na boca trim! trim! trim!, você não quer ouvir a vendedora que já imagina, voz robótica, uniforme, ânsia de comissão... Maluco, quando acordo preciso de tempo! Café na xícara, cigarro e olhar pras paredes, pro chão... Melhor dizendo, ainda não acordei plenamente assim que me levanto, preciso fazer uma espécie de meditação, demoro um tempo para sintonizar a realidade... Se tentam me forçar a me comunicar, a acordar de uma vez, emito chiados que são como advertências rosnadas pela Besta!

- Aqui, cumpadi, eu preciso admitir toda minha covardia. É uma covardia real, de carne, osso e sangue. Veja bem: a respeito da lorota que você acabou de nos contar, eu sou o cara que não se incomoda com o lixo do vizinho por um motivo simples e digno de pena: medo. Não que uma velha me coloque medo, ou um senhorzinho qualquer preso ao seu mundinho de homem da década de 40, ou 50, sabe-se lá (no final, os que nasceram em 30, 40, 50, 60, 70 etc. etc., quando envelhecem, encarnam todos o mesmo ranço insuportável de homem comum que sempre foram e serão), me invoque qualquer forma de opressão ou temor. O que me parece insuportável, meu camarada, é a situação. É preciso muito cuidado para vida não descambar e perder o sentido de vez - certamente você me entende. Ah, preciso gargalhar. Só um minuto. Pronto. Gargalhei. É que isso de dizer que alguém me entende... é hilário. Por mim, escreveria ainda duas, três páginas acerca do medo que alimento das situações mais banais e comuns que a vida nos atravessa, só de sacanagem, através do cu da paciência. Mas não vou zangá-los à toa. É preciso manter o impossível em mente para não chatear o espírito com o lixo do vizinho. 

"Manter o impossível em mente"?!...

- Também não me incomodo com o lixo do vizinho, desde que na lixeira do vizinho! Pensando em outra coisa nas linhas da mesma coisa: Não há como escapar do lixo, tem além de tudo o odor. E do odor como fugir? Precisamos respirar. Tipo O Perfume, saca? Aquele livro que virou filme... Já leu?

- Claro que não! Eu lá sou homem de best-seller? Mas vi o filme, porque perder duas horas em frente à TV me parece menos grotesco que ler o livro que todo mundo leu. Olha, abro mão de tudo, exceto dos preconceitos que carrego como diamantes de merda. Me custaram um tempo do caralho, meus preconceitos. Quer dizer, o que nos sustenta de pé é a ignorância. Sacou? Enquanto houver uma ideia fodida e mal gerada dentro de nós, haverá vida. Aliás, acho que o nascimento de qualquer homem é mais ou menos isso: somos uma ideia fodida e mal ajambrada dentro do útero esperançoso de nossas mães. Elas sonham, estupidamente, que conquistaremos o mundo. O pior é que nós também sonhamos! Putaqueopariu. Acabamos implicando com o lixo do vizinho. Tudo bem que o lixo do vizinho está quase a bater a nossa porta e pedir uma xícara de açúcar, mas quantas vezes não despejamos nosso lixo emocional nos vizinhos que dividem conosco o sangue, a cama e a amizade?

"Enquanto houver uma ideia fodida e mal gerada..." - "Sujeito caótico!", penso.

- Sabe que é, Cabra, agora não sei se me faltam cigarros ou se faltam sinapses em suas palavras. Você faz umas conexões estranhas! Por outro lado, concordo com isto: acho mesmo que a ignorância... Que alguma é necessária para vivermos. Senão a ignorância, uma distância que nos mantenha "saudáveis", distância tipo: Pensar na África é muito longe de viver a África, pensar é mais seguro e maleável. Depois, vejo que você leva os vizinhos pra cama, mas aí eles já viraram outra coisa... Assim também você parece me levar para a implicância com o lixo do vizinho! E quanto ao lixo emocional, é muito mais difícil identificar o que seria! Acho que os lixos emocionais possam ser reconhecidos pela redundância, digo, se são sentimentos que sempre entornam um mesmo roteiro nos mesmos ouvidos, daí então se tornaria lixo! - desconverso - E Paulo Coelho? Tu nunca leu Paulo Coelho? - sentia a necessidade de dar um assunto mais retilíneo para o Cabra enquanto o "Barão de Cidade Jardim" não chegava. Pense aí, vou ali comprar cigarros!

Sair para comprar cigarros, respirar um pouco com a alma. Cabra  me fazia necessitar do silêncio. E cadê o Barão para dividir aquela audiência comigo? Tão logo eu voltasse à mesa, ele já estaria cheio de palavras, começaria a despejá-las, a engrená-las construindo uma espécie de engenho que não girava, não moía nada em farinha nenhuma, não gerava energia... Enfim, era uma espécie de arte mesmo, de pura arte palavrosa que iria ganhando o ar com as exaltações. E as conexões das engrenagens? Como rangiam! Um rangido que me dava nos nervos como se uma criança esfregasse um garfo no prato, apenas para causar sensações nos presentes, chamando atenção para si! A engrenagem que ele constituía, se havia algo engrenado para supô-la como tal, parecia sempre prestes a estourar! Aqueles gestos todos... Eu achava que Cabra pensava por imagens pinçadas meio que aleatoriamente, e uma vez postas sobre a mesa aquelas imagens, ele advogava por elas, inventá-lhes uma conexão, uma defesa por existirem, um propósito! Era tão hábil nesta arte, que não precisava se preocupar muito com o que expressava. Não teria lhe dito uma vez: Você, Cabra, parece que pensa na folha, no ar, em seguida vem a cabeça, logo atrás, como uma advogado de defesa. A impressão que eu tinha, ao vê-lo conectar as ideias, era de que Cabra era como um museu: os objetos se expunham retirados do contexto em que faziam sentido. Há um artista que faz isto apenas, coisas como colocar um tanque de guerra dentro de uma cozinha. "Como seria mesmo o nome do cara?", era nisto que eu pensaria até ter os cigarros.


- Nunca li Paulo Coelho, afinal, preciso manter a pose – e o que ainda me resta de sanidade literária. Aliás, o que você tem contra o caos, contra o incomensurável? Me parece que a musica lhe sensibilizou os ouvidos definitivamente. Você é um homem sensível, e a prova disso é a mãe velha e debilitada que carrega como um violão. E quando digo sensível, não me refiro a expertise com as coisas das letras, da filosofia ou dos sons – falo do homem perdido e solitário que ainda não teve a chance de se encontrar. Minto! Talvez você tenha se encontrado uma, duas, três vezes ao curso da vida. Mas é sempre um encontro pela metade, como se lhe faltasse um clímax glorioso e duradouro. A tal felicidade, que não existe, ok, mas que nos habita o consciente como uma cascavel melindrosa e irresistível.  Retornando ao caos, devo dizer que tenho por ele amor de filho. Amor – outra palavra não estaria à altura. O mundo, tão caótico, sempre em busca de uma ordem, seja ela mística ou racional, fantasiosa ou científica, renega o caos que o gerou e alimentou no útero agastado do tempo. Não há quem permaneça impassível ante a eternidade, que não é outra coisa senão o caos perfumado e bem arrumado. 

-Não tenho nada contra o caos! Só acho complexo dialogar com ele, se possível for!- aqui imagino Cabra dizendo: "Que você tem contra o complexo?" -  Nada contra o complexo! Mas sem mergulhar em amizades e convivências simples, digo, sem um recanto que nos roube da ideia do caos e nos imprima em certa ordem, como nos roubasse para férias do descontrole... Canso-me! É como arrumar a casa, compreende? Não deixaria de manter alguma organização na casa. Para quê? Pergunte à civilização! Aos vendedores de cômodas e produtos de limpeza! Talvez para que algo me devolva a sensação de controle! Até consigo apreender que lidar com o caos possa ser uma forma de "liberdade", de obediência aos acasos, digo: Deixa a vida me levar... Ao caos já dei um livro, um idioma! Bastou-me? Tudo por enquanto, né? Assim o entendendo, penso que as palavras são algo como um calçamento estreito onde passeio "livre" do trânsito do caos, livre de um temeroso infinito. Contigo - risos - parece corda bamba! Calçamento estreito! Mas é o jeito! Não me agrada fazer de tudo um caos, além do inevitável, senão eu conversaria com um grego, anh? Cada qual em seu idioma e sem tradutor. Pense! Haveremos de criar um sentido, e não esperar que ele venha do futuro, do passado... Até mesmo porque há a seguinte prudência ocorrendo agora: Aqui preciso respondê-lo, obedecer suas provocações, tenho de seguir alguma lógica, não? Se escapo disso, a conversa perde-se de ser conversa... Ou seja, se me jogo no caos, já era! Não há língua comum e convenções que nos permitam um encontro. A própria racionalidade, neste aspecto, é uma fuga do caos, as religiões que formam uma compreensão de mundo, as filosofias... Fugas! Melhor, não encaremos como "fuga", porque esta palavra já esta carregada com infâmias, possui um sentido de covardia, de derrota... Em vez disso, encaremos como necessidade mesmo, transformação... A ordem exige labor, não quero dizer: fugir do caos para a covardia de uma ordem. A ordem é a pirâmides o caos é o deserto! Em vez de fuga, usemos então "a construção de uma ordem"! Veja, há ordem também em conhecer estações, momentos propícios para plantar e colher etc.  Cabra, entendido o encontro como coisa em que há graus de proximidade, procuro a maior proximidade sua possível. Como dos demais interlocutores que me interessam. Não alcançando nada que me pareça um fruto saboroso, antecipa-se a hora de partir! Mas veja! Não é o caso, pois que há provocação vinda de suas palavras, e parece que produzimos algo aqui juntos. Não? São para mim como fertilizantes suas palavras. Percebe? Espero ser fértil também para você! Já a provocação quanto à velha... Não me apetece comentá-la. A velha pode ser qualquer coisa, e o que sinto por ela pode ser qualquer coisa... Posso erguer heroísmos e infâmias de viver com ela! De maneira que sondar por aí, me parece, sondar um terreno muito subjetivo em que cada qual faz como quer, ou seja, caótico e libertário. Além do que a velha já está presente em meus escritos, em suas orelhas e compreensão, de maneira que não me apetece despejar este "lixo emocional em você, nem em ninguém!" Cabra, gosto de você... - e cansado de discorrer racionalmente mudei o rumo - O Barão não deve vir hoje. Quem sabe amanhã? O que proponho agora é que nos entreguemos a amenidades, frivolidades como dois sujeitos que sabem da incompetência para encontrar a verdade... Ficaremos por fim os mesmos intelectualmente, orgulhosos com nossos pontos de vista, com os mesmos pontos sendo levados de volta pra casa! Assim é, sobretudo quando os pontos se opõem! Para mudar o rumo de um barco não temos que colocar o nosso ao lado dele? Ir de encontro é naufrágio duplo, meu brother! A oposição, me parece uma forma tola, senão grosseira, digo, pouco sensível ao que há de belo no divergente! Revoltada ela não percebe as nuances de concordância entre as partes. Falo isto para que a evitemos, e não para que deixemos de divergir aqui e ali... Isto é inevitável e produto de naturezas ricas, anh? Se for de seu gosto, evitemos as oposições totais, absolutas! Esta, meu amigo, cada vez que elege um inimigo, não lhe observa mais nenhuma nobreza nos atos, ele inteiro torna-se ante ela o "mal", posto que ela pretenda, plenamente oposta, ser o "bem" no mundo dicotômico que enxerga: "O que vem do mal, mal deve ser. Para que analisar?" -  É isto que fazem as oposições totais e absolutas, nos cegam de ver as nuances! Espero que não nos tornemos assim um para o outro! Emprega-se então, a oposição, a difamar os atos do que enxerga como inimigo, adversário... Já não pode reconhecer naquele outro humanidades, nuances de beleza... Se lhe encontra um erro moral, o faz brilhar entre mil acertos...  Não é assim, meu amigo? - esgotado de tanto uso de razão onde esperava encontrar, talvez, um recanto de conforto, dei um gole na cerveja e troquei abruptamente o rumo da prosa - Hein! Frivolidades! Vamos a elas! Que você me diz se lhe proponho pôr uma música aí? Sua vez!

"É, o Barão não vem mesmo!", pensei.